quarta-feira, 18 de agosto de 2021

O golpe de 64: crise econômica profunda, mas não decisiva

Coluna publicada em 13 de março de 2014. No pé, antevia o que seria visto no Brasil a seguir: Os santos guerreiros e o dragão da maldade César Felício A energia elétrica estava racionada em São Paulo, efeito das chuvas fracas na estação das águas: nenhum reservatório contava com mais de 20% de sua capacidade. O ano de 1964 começou com 54% das crianças em idade escolar fora do sistema educacional e com um déficit orçamentário previsto pelo próprio governo em Cr$ 1 trilhão, o equivalente a toda receita prevista. A inflação de 80% ao ano sem qualquer mecanismo de correção monetária levava a todos que tinham opção a fugirem do cruzeiro. No Rio de Janeiro, 5 mil imóveis estavam fechados , enquanto anúncios de aluguel eram publicados em dólar nos jornais. No mercado paralelo, a cotação do dólar saltou de Cr$ 360 em dezembro de 1961 para Cr$ 850 um ano mais tarde e Cr$ 1.270 nos idos daquele março do golpe. O governo Goulart sabia que precisava pagar US$ 1,6 bilhão em compromissos externos no biênio 64/65, o equivalente a 60% das exportações previstas para o período. Estabeleceu um controle cambial pelo qual as exportações de commodities e importações de petróleo, trigo e bens de capital, responsáveis por 80% do fluxo, tinham que passar pelo Banco do Brasil. Nos últimos oito anos, o Brasil havia terminado com déficit no balanço de pagamentos em sete. Apostando na desvalorização, os importadores correram para formar estoques e os exportadores retardavam ao máximo suas vendas. Na busca desesperada por divisas, Jango apertou as torneiras, restringindo remessas de lucros e dividendos. A resposta foi o corte de investimentos. Em 1961, haviam ingressado US$ 288 milhões em capitais. Em 1963, houve saída líquida de US$ 54 milhões. O crescimento econômico desceu de maneira vertiginosa: entre 1957 e 1962, havia sido superior a 6% todos os anos. Em 1963, foi de apenas 0,6%. A crise econômica de 1964 esteve longe de ser inédita. Vinte anos depois, os militares entregaram um país com baixo crescimento econômico e pronto para a hiperinflação. Ela se destaca da que a sucedeu, entretanto, pela sua irrelevância no debate político. A falta de luz, de moradia e o desabastecimento eram pé de página em jornais e tema quase ausente das manifestações de rua contra ou a favor do golpe em preparação. Goulart buscava se legitimar politicamente trazendo para a cena política novos atores, capazes de se empolgar com a reforma agrária em grande escala anunciada no comício de 13 de março daquele ano. Em seus 30 meses de governo, gastou 16 para recuperar os poderes tolhidos após a crise de 1961. Nem antes e nem depois um presidente chegou ao poder tão debilitado. Jango manteve ministros da Fazenda amigáveis ao capital internacional durante toda sua administração. Traçaram uma agenda de reorganização do Estado, que passava pelo controle de gastos, criação de um Banco Central, corte de subsídios e aumento de impostos. A cada lance de radicalização, entretanto, o presidente buscava formas mais eficazes de legitimação do que a credibilidade da política econômica. “Jango ensaiou várias vezes o ajuste, mas recuava ao não sentir respaldo. Os dias primeiros de maio de 1962 e 1963 foram cruciais. Em ambos os anos, o presidente arbitrou a favor de grandes aumentos para o funcionalismo, contra as posições assumidas pela equipe econômica do governo”, comentou Pedro Cézar Dutra da Fonseca, economista da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Dutra assinala que boa parte da agenda ensaiada pelos ministros de Goulart foi implantada pelos governos do regime militar: a centralização de poderes no Executivo, o aumento da carga tributária, a criação de mecanismos de correção monetária que fomentasse um mercado de capitais. Até obras de infraestrutura de grande porte, como Itaipu e usinas nucleares, emblemáticas do período que o sucedeu, estavam nos planos do governo deposto em 1964. Esta pode ser uma hipótese para explicar porque os rosários da classe média se ergueram em março contra o comunismo e supostos planos continuístas de Jango: na economia, havia um relativo consenso sobre qual era a agenda de modernização do Estado: a guerra estava na política. “A crise econômica veio de antes, herdada da construção de Brasília. E no governo de Castello Branco, o ministro do Planejamento Roberto Campos não inventou suas políticas do nada, recolheu os documentos elaborados pela burocracia administrativa que assessorava Jango. O problema de Goulart não era ‘mala praxis’ de seus auxiliares. Nada nasceu do zero”, comentou o ex-ministro da Fazenda Luiz Carlos Bresser-Pereira. Há 50 anos, o ex-ministro começava a sua carreira de executivo do grupo de varejo Pão de Açúcar, e debita a conta do golpe em Fidel Castro. “A revolução cubana radicalizou a esquerda no Brasil, fechou as portas da Casa Branca para os governos reformistas e apavorou as classes conservadoras. Não havia debate econômico, havia pânico com o comunismo”, disse. Prestes a completar 80 anos, Bresser-Pereira classifica como “alucinação” o evento convocado para o dia 22 de março nas redes sociais sob o título “Marcha da Família com Deus II — o retorno”. “Não há dúvidas de que 11 anos de governos de esquerda aborrecem certos setores, mas o Brasil em 1964 estava fazendo a sua revolução capitalista. Hoje há um capitalismo consolidado. Difícil imaginar duas situações tão diferentes”, disse. A principal convocação para a marcha, na rede Facebook, conta com pouco mais de 3 mil presenças confirmadas no evento que promete pedir na porta de quartéis em todo o Brasil a “expulsão dos vermelhos” por uma “intervenção militar constitucional”. É cerca de metade dos que aderiram ao primeiro dos “rolezinhos” convocado pelos internautas. Promete ser uma fração dos 500 mil que lotaram São Paulo em 19 de março de 1964. Mas talvez seja precipitado achar que chegarão aos pontos de encontro em vemaguetes e gordinis. O rótulo de comunista hoje é colocado pelos santos guerreiros da internet em qualquer política que envolva mexer em um universo de valores morais. E a derrota do projeto governamental para o marco civil na internet é a bandeira mais imediata. A encenação será na rua, mas o campo de batalha é virtual.

Os primeiros meses do Papa- 9 de janeiro de 2014

Estado laico? Governo e oposição evitam entrar em choque com Francisco Políticos na Argentina se curvam à agenda do papa César Felício De Buenos Aires Em nove meses de pontificado, o papa Francisco está conseguindo fazer na Argentina o que não obteve em seus 15 anos à frente da Arquidiocese de Buenos Aires: aumentar a influência da Igreja na política e na sociedade. A Igreja chefiada Jorge Mario Bergoglio fez com que a oposição e o governo da presidente Cristina Kirchner alterassem sua agenda e colocassem, por exemplo, o combate ao narcotráfico como prioridade. Há três semanas, quatro presidenciáveis oposicionistas assinaram um compromisso de adotar a recomendação da Conferência Episcopal Argentina (CEA) para a questão. Se comprometeram Sergio Massa (Frente Renovadora); Ernesto Sanz (União Cívica Radical), Hermes Binner (Partido Socialista) e Mauricio Macri (PRO). Na plataforma que subscreveram consta “desalentar o consumo de drogas” e regulamentar a legislação que coíbe a venda de produtos químicos usados na produção de drogas sintéticas e na transformação da pasta base em cocaína. O governo já havia se alinhado antes. Em novembro, os bispos argentinos divulgaram um duro comunicado levantando a suspeita de conivência da administração pública com ”grupos mafiosos” e cobrando a nomeação de um titular para a Sedronar, órgão federal de combate ao narcotráfico. Dias depois, Cristina nomeou para o cargo o padre salesiano Juan Carlos Molina, confessor de sua cunhada, a ministra do Desenvolvimento Social, Alicia Kirchner. Os bispos reconheceram o gesto, mas soltaram um nota afirmando que Molina não assumia “nem em nome, nem em representação da Igreja Católica”. No Congresso, a Igreja foi capaz de alterar o polêmico projeto do novo Código Civil, já aprovado pelo Senado e que deve ir à Câmara em março. Líderes do Executivo e do Legislativo colocaram Roma em seu roteiro obrigatório de consultas políticas. Entre as mudanças, estão o reconhecimento como pessoa humana de embriões produzidos por reprodução assistida e a retirada da regulamentação da gravidez de “barriga de aluguel”. “Muita coisa mudou. O papa deu uma visão mais positiva da instituição e as forças políticas procuram legitimar-se associando-se a ele. A hierarquia católica ganhou poder de articulação”, disse o economista Alejandro Nasif Salum, representante dos militantes por direitos de homossexuais dentro da Coalizão Argentina pelo Estado Laico (Cael), o enfraquecido grupo de pressão que impulsiona a aprovação do novo código. O aumento da força política do catolicismo partiu de uma base institucional sólida. Embora Bergoglio tenha sido derrotado em questões como a aprovação do casamento entre gays, em 2010, a lei que regulamenta a mudança de sexo e a permissão do aborto em casos de estupro e má-formação do feto, entre 2011 e 2012, a Igreja Católica ainda desfruta de uma posição legal privilegiada, garantida desde o surgimento do país. É a única confissão religiosa considerada pessoa jurídica de direito público, o que lhe garante, entre outras coisas, não ter bens sujeitos a embargo judicial e nem se sujeitar aos limites à propriedade de rádios e TV impostos pela lei de mídia de 2009. Pelo artigo 2 da Constituição argentina, o governo é obrigado “a sustentar o culto apostólico romano”, o que se traduz na ajuda pública para o pagamento de salários de parte do clero, despesas com viagens e com eventos. No Orçamento de 2013, estava previsto o custeio de 131 bispos, 640 sacerdotes e 1.600 seminaristas. O Ministério de Relações Exteriores e Culto previa gastar com o sustento da Igreja Católica 62,8 milhões de pesos argentinos, o equivalente a cerca de US$ 12 milhões, pela cotação média do ano passado. Na Casa Rosada, a equação de forças mudou quando, em 20 de novembro, Cristina nomeou o governador do Chaco, Jorge Capitanich, como ministro-chefe de Gabinete, cargo similar ao de ministro da Casa Civil no Brasil. Capitanich é conhecido por sua ótima relação com a hierarquia católica. No mês passado, em meio a uma onda de saques no interior do país associados à motins das forças policiais regionais, Cristina recebeu na residência oficial de Olivos a cúpula da Igreja Católica. A presidente argentina, que desde sua operação no cérebro em 5 de outubro só apareceu em público duas vezes, não procurou nesse momento uma aproximação apenas com o clero comandado por Bergoglio: também se encontrou com a entidade que representa a religião judaica (Daia) e a Federação das Igrejas Evangélicas da Argentina.
Ainda existe!

quinta-feira, 10 de outubro de 2013

A escassez na Argentina

Matéria publicada em 2/04/2012 or César Felício | De Buenos Aires A onda de frio nos últimos dias em Buenos Aires, com temperaturas de sete graus já em março, aumentou o descompasso entre o que se vê em algumas vitrines e o que se observa nas calçadas da cidade. Enquanto os pedestres passam agasalhados, os manequins ainda ostentam roupas leves, de verão. "Todas as coleções estão atrasadas", disse uma lojista que não se identificou, na avenida Las Heras, região norte da cidade. De modo sutil, os sinais de desabastecimento na capital argentina vão se mostrando depois da criação de uma série de barreiras comerciais pelo governo com praticamente uma novidade por semana: a desta sexta-feira foi a introdução de um controle fotográfico nos contêineres, para verificar se a carga retida condiz com as declarações de antecipação das importações, mecanismo criado em 1º de fevereiro que barrou cerca de 30% das compras do país. Segundo o diretor de relações institucionais da Câmara de Importadores da Argentina (Cira), Miguel Ponce, das 164 mil declarações apresentadas desde 1º de fevereiro, 51 mil ainda não foram liberadas. A barreira motivou a apresentação de um documento no comitê de bens da Organização Mundial de Comércio (OMC) por parte da União Europeia, dos Estados Unidos e de outros 14 países. As barreiras afetam também a indústria nacional: no caso do vestuário, por exemplo, a confecção é feita com tecido importado, que está retido. Mas o desabastecimento é mais grave nos itens que já estavam com problemas de importação antes da criação das mais recentes barreiras. "Entre 2008 e 2011, aumentou muito a quantidade de produtos colocados no regime de licenças não automáticas. Quando a área de comércio exterior saiu do Ministério da Indústria para uma secretaria própria na órbita do secretário de Comércio Interior, Guillermo Moreno, havia uma herança de licenças vencidas e não renovadas. O resultado é que temos encomendas barradas desde agosto", disse Ponce. "Não temos mais como vender a linha Fischer-Price, os fabricados pela Mattel e os produtos Chicco. Ainda conseguimos oferecer os brinquedos mais baratos", afirmou o gerente da loja de brinquedos El Mundo del Juguete no centro da cidade. As vitrines da loja são arrumadas para que os clarões na oferta não sejam percebidos. "Nem fazemos mais pedidos de liquidificadores, porque sabemos que não seremos atendidos", comentou um vendedor da rede de varejo Falabella, na mesma região. A falta de liquidificadores começou há anos na Argentina, dentro de uma estratégia protecionista da ministra da Indústria, Débora Giorgi, de fomentar a produção nacional. Diversos produtos foram colocados sob regime de licenças não automáticas. Em seguida, integrantes do governo procuraram deixar claro para os importadores que as mercadorias só seriam liberadas se eles exportassem. O mecanismo, totalmente informal, ficou conhecido como "uno por uno". A mesma situação acontece com outras utilidades domésticas, como os ferros de passar roupa. A indústria nacional cresceu, mas não a ponto de suprir o mercado doméstico, gerando o desabastecimento. A produção de ferros de passar roupa, por exemplo, passou de 450 mil para 1,7 milhão de unidades entre 2007 e 2011. O aumento não compensou, entretanto, a queda das importações, que despencaram de 2,3 milhões de unidades para 400 mil nesse período, de acordo com levantamento publicado no jornal "El Cronista". O resultado final é que a oferta de ferros caiu de 2,7 milhões de unidades há cinco anos para 2,1 milhões de unidades agora. A indústria argentina tem dificuldades estruturais para prescindir das importações. "O governo queria resultados rápidos para a política de substituição de importações e mirou no produto acabado, e não em suas peças. Desse modo, a geladeira é nacional, mas o compressor é brasileiro; ou o liquidificador é argentino, mas o copo é chinês, e assim por diante. E a produção de um eletrodoméstico acabado é só uma operação de montagem. Mais complicado é produzir os componentes", disse o economista Mauricio Claveri, especialista em comércio exterior da consultoria Abeceb. A dificuldade de importar também afeta o comércio de alimentos. Na área de suínos, segundo a avaliação da Câmara Argentina da Indústria de Chacinados, a produção caiu cerca de 20% quando as importações de carne suína provenientes do Brasil foram reduzidas de US$ 9,5 milhões em janeiro para apenas US$ 1,5 milhão em fevereiro. Segundo dirigentes da entidade, seria necessário um aumento do rebanho suíno de 30% para que a Argentina se tornasse completamente autossuficiente em presuntos, salsichas e outros embutidos. Mas isso traria um complicador, já que a demanda existe para apenas determinadas partes do porco, próprias para o processamento, e não para outras. Com a barreira criada, a indústria priorizou a fabricação das linhas com maior valor agregado. Ficou difícil de encontrar as mais baratas. Nas gôndolas de supermercados, contudo, a falta de determinados produtos ainda afeta pouco o vendedor ou o consumidor. "Aqui vendemos 6.000 itens. Se o consumidor não encontra determinada marca de sabonete ou iogurte ou algum presunto que está acostumado a encontrar, leva outro. O que não dá para pensar é oferecer importado. Só o que tem no estoque", disse o secretário-geral da Casrech (câmara argentina de supermercados de proprietários de origem chinesa), Zheng Ji Cong. Valor Economico, 02/04/2012

A conquista de um passado

Coluna publicada em 22/03/2012 . Por César Felício Os visitantes brasileiros dificilmente prestam atenção nas calçadas de Buenos Aires, nos escassos dias que dispõem, em geral, para percorrer as ruas da capital argentina. Talvez poucos tenham reparado em pequenas placas fixadas no chão, em ladrilhos, com o nome de uma pessoa, a data de seu nascimento e a de seu desaparecimento, naquele local. Placas como essas estão em toda cidade. Em frente ao Colégio Figueroa Alcorta, um estabelecimento público de ensino médio na avenida Santa Fé, no bairro de Palermo, se acumulam várias plaquinhas. São 14 nomes, que sumiram em um ano e meio, entre 1976 e 1977. É uma média de quase um por mês. Pela idade das vítimas, todos estudantes. Cenas assim ajudam a tecer um fenômeno que transcende o julgamento de criminosos que violaram os direitos humanos usando o aparelho do Estado: de certo modo, trata-se da apropriação de uma narrativa, de um modo de contar as coisas, o que só se torna possível depois da realização de investigações que não se limitam ao Judiciário. Punir não é o centro do debate A releitura do passado está longe de ser uma questão menor. Foi graças a mobilizações proporcionadas por comissões de investigações que hoje existe uma condenação quase universal na sociedade argentina ao último regime militar. Maior responsável pelo morticínio, o ex-presidente Jorge Rafael Videla concedeu uma recente entrevista a um jornal espanhol, do cárcere perpétuo em que cumpre pena. Em uma sociedade polarizada como a da Argentina, seus ataques ao governo foram recebidos com repulsa por todos os setores políticos. Em pelo menos um ponto, contudo, Videla está certo: nem sempre foi assim. Nas duas décadas de democracia, houve repressores que chegaram a governos locais, como o general Antonio Bussi em Tucumán, e líderes dos "carapintadas" - militares que se amotinaram contra os processos judiciais, como Aldo Rico - que se tornaram políticos profissionais. Houve até um dos comandantes da repressão, o almirante Emilio Massera, que tentou candidatar-se à Presidência, em meio à confusa abertura argentina em 1983. A chave para a virada foi o controle do relato dos fatos. Os militares do antigo regime foram marchando para o degredo da história de maneira paulatina. Se não fosse a exposição pública de seus desmandos, as punições que sofreram e sofrem pouco valeriam no contexto social: Videla e sua turma poderiam ser vistos como mártires do revanchismo. Do mesmo modo, as vítimas, muitas delas ligadas a movimentos de expressão terrorista, como o dos Montoneros, ganharam outra expressão histórica. Alguns filhos de desaparecidos estão hoje no Congresso argentino, tendo ingressado na política exatamente por esta condição. O exemplo argentino foi um caso emblemático que marcou a transição nos demais países da América Latina de um regime militar para um civil, exatamente por ser extremo. Apavorou segmentos da elite latino-americana da mesma forma que os escravos haitianos no fim do século 18, quando trucidaram seus senhores. De maneira diluída, entretanto, uma revisão está em curso em praticamente todos os países do continente. Exceção à Venezuela, Colômbia e México, sendo que em nenhum destes três existiu ditadura plena nos últimos cinquenta anos, há ou houve "comissões da verdade" em todos os demais países. Da Guatemala ao Uruguai, passando por Chile e Haiti. É incorreto dizer que não existiu coisa equivalente no Brasil antes de Dilma Rousseff. Seria desmerecer o trabalho desenvolvido em 1985 pela Arquidiocese de São Paulo e o esforço de reparação feito em 1995 pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso. Dilma não se tornou presidente pelo fato de ter integrado um movimento armado, sido torturada e passado anos em um presídio, mas não se pode dizer que chegou à Presidência apesar disso. Seu passado foi exibido em sua campanha política e só se tornou um foco de campanha negativa nos subterrâneos da internet. O contrário sim, seria um impeditivo: alguém que tenha sido colaborador do DOI-Codi, por exemplo, não tem muitas perspectivas de êxito eleitoral. De certo modo, a história brasileira já é contada pela ótica de quem foi derrotado no embate militar dos anos 70. Ainda que a Lei de Anistia de 1979 não seja tocada - e certamente não será, depois do aval que recebeu do Supremo Tribunal Federal, no ano passado - a simples colocação do tema em pauta vai, de forma gradual, construindo uma nova versão sobre o processo do fim do regime militar brasileiro. Esmaece a visão positiva sobre o esforço de moderados do governo e da oposição de então na construção de um acordo em que os governantes abriram mão do futuro para que os oposicionistas colocassem uma pedra no passado. Tende a se sedimentar uma outra escrita dos fatos ocorridos nos anos 1970 e 1980, em que a conciliação entre extremos perde o protagonismo e em que se projeta a pergunta: houve acordo? Se o critério criminal, e não político, fosse o norteador da questão, talvez existisse espaço para muitas comissões de investigação no país. As "comissões da verdade" podem existir em qualquer lugar onde houve graves violações de direitos humanos patrocinadas, com a conivência dos agentes do Estado ou simplesmente não esclarecidas pelo poder público. Na lista de ONGs como a Anistia Internacional figuram até países como os Estados Unidos, onde uma comissão da verdade existiu para investigar crimes de base racista provocados pela Ku Klux Klan. No Peru, sem grande sucesso, houve comissões para esclarecer um massacre em presídios em 1986 e uma chacina de jornalistas em 1983. Um breve exame do saldo de condenações e esclarecimento dos assassinatos no campo brasileiro nas últimas décadas por si só traria uma resposta. César Felício é correspondente em Buenos Aires. Escreve mensalmente às quintas-feiras E-mail cesar.felicio@valor.com.br

Sean Penn contra Meryl Streep

Coluna publicada em 23/02/2012 . Por César Felício Na segunda-feira, o secretário de Defesa do Reino Unido, Philip Hammond, foi taxativo ao falar aos parlamentares na Câmara dos Comuns: a Argentina não representa uma ameaça séria do ponto de vista militar às ilhas Malvinas, ou Falklands. Como neste jogo de xadrez o Reino Unido joga com as pedras pretas, fica claro que a disputa pelas ilhas no Atlântico Sul podem ter muitos desdobramentos, e o bélico não é um deles. A certeza de que não haverá guerra tem tornado a confrontação nas ilhas Malvinas uma alternativa tentadora tanto para o governo de David Cameron como para o de Cristina Fernández de Kirchner. Além do embate diplomático, factoides não faltaram de parte a parte: do envio do príncipe Harry para um treinamento militar à troca de um navio de guerra estacionado na região, do lado inglês, à transformação do ator Sean Penn em um protagonista na luta contra o colonialismo, do lado argentino, com direito a discorrer sobre o tema em uma declaração à imprensa ao lado do chanceler Hector Timerman. Reino Unido e Argentina contam com dois governantes afeitos à retórica radical em meio a um contexto de dificuldades crescentes, em que a carta do nacionalismo é uma excelente forma de atenuar a resistência da opinião pública ao aprofundamento do modelo de Estado que cada um deles propõe. É uma cartada raramente usada na história do Brasil, um país sem disputas territoriais há mais de cem anos. O uso mais recente foi o do "Ame-o ou deixe-o", o slogan do qual o governo Médici lançou mão para insinuar que os exilados e banidos tinham menor sentimento patriótico. Na guerra retórica, Cristina e Cameron são vencedores Eleito com dificuldade em maio de 2010, o que obrigou a formar um governo de coalizão com o terceiro colocado, Cameron enfrentou um verdadeiro motim popular em Londres em agosto do ano passado. Tem respondido dobrando sua aposta conservadora: classificou a revolta social como "criminalidade pura e simples" e busca acelerar a implementação de sua agenda. No início do ano, comparou o sistema de saúde pública do país, talvez o mais abrangente e eficaz do mundo, como uma ave de rapina no pescoço dos empreendedores. Cameron está pagando o preço de suas escolhas nas ruas. De acordo com a última pesquisa divulgada pelo "The Guardian", a aceitação de seu partido recuou de 40% para 36%, enquanto a dos trabalhistas subiu de 35% para 37%. É neste instante que recebe a ajuda de Cristina Kirchner. A ofensiva dos simbolismos argentinos para marcar os trinta anos da derrota militar latino-americana abriu uma oportunidade para Cameron incorporar um pouco da verve de Margaret Thatcher. Não com o brilho da atriz Meryl Streep, mas com a efeitos políticos análogos. "Primeiros-ministros que são fracos em casa sonham em serem fortes fora. O fantasma de Thatcher paira sobre os conflitos. Nas Falklands, Maggie mostrou que ganhar glória militar rápida era infinitamente mais fácil do que resolver problemas domésticos", observou na semana passada Tony Parsons, colunista do tabloide inglês "Daily Mirror". Reeleita em outubro com 54% dos votos, Cristina tem oferecido a seus eleitores um cardápio que passa por retirada de subsídios governamentais ao consumo, inflação em alta e desaceleração do crescimento econômico. A presidente necessita promover o ajuste para garantir que o país tenha caixa suficiente para impedir uma crise cambial, doa a quem doer. Implanta uma ortodoxia que passa por uma economia meticulosamente manietada por controles oficiais. Não há pesquisas que mostram como anda a aceitação popular da presidente argentina, mas a reação acalorada dos ingleses à inócua decisão de dezembro do Mercosul de impedir que navios com bandeira da colônia atracassem em seus portos possibilitou a Cristina pela primeira vez em muito tempo falar em nome da nação e não da principal facção política do país. No dia 8, ao denunciar formalmente na ONU o Reino Unido por promover uma escalada militar no Atlântico Sul, recebeu o apoio, entre outros, do líder do partido do principal candidato de oposição em 2015, o prefeito de Buenos Aires, Mauricio Macri. É duvidoso que a questão malvinense tenha para Cristina o poder galvanizador que teria dado uma sobrevida à ditadura em 1982, caso a Argentina tivesse ganho a guerra. Àquela época, a oposição ao general Galtieri embarcou na aventura. Hoje, os intelectuais afastados da Casa Rosada questionam não apenas a oportunidade, mas o mérito da polêmica. "Não temos ainda uma crítica pública do apoio social à guerra, que mobilizou a quase todos os setores da sociedade argentina. Uma análise minimamente objetiva demonstra a brecha que existe entre a enormidade dos atos e a importância real da questão", assinalaram 17 intelectuais oposicionistas, como Beatriz Sarlo, Vicente Palermo, Juan José Sebrelli e Marcos Novaro, no documento "Malvinas: uma visão alternativa". No texto, os intelectuais afirmam que o princípio de autodeterminação deve valer para os habitantes da ilha, britânicos em sua essência. "É necessário por fim hoje à contraditória exigência do governo argentino de abrir uma negociação bilateral que inclua o tema da soberania, ao mesmo tempo que se anuncia que a soberania argentina é inegociável", afirma o texto, que define o slogan "Las Malvinas son argentinas" como uma "afirmação obsessiva". "Como membros de uma sociedade plural e diversa que tem na imigração sua fonte principal de integração populacional não consideramos ter direitos preferenciais que nos permitam sobrepor aos que vivem e trabalham nas Malvinas há várias gerações, muito antes que chegassem ao país alguns de nossos ancestrais". A reclamação kirchnerista pelas Malvinas faz uso de um nacionalismo conveniente à medida em que não gera consequências diretas. Em relação a outras causas em que o nacionalismo poderia afetar a economia nacional, o governo argentino não hesita em favorecer o investimento externo, como ocorre atualmente na mineração. Há questionamentos em todas as províncias mineradoras à extração de minérios a céu aberto, feitas por empresas invariavelmente estrangeiras. A tendência dos governadores, todos alinhados à Casa Rosada, é de garantir o espaço para os empreendimentos seguirem adiante. César Felício é correspondente em Buenos Aires. Escreve mensalmente às quintas-feiras © 2000 – 2013. Todos os direitos reservados ao Valor Econômico S.A. . Verifique nossos Termos de Uso em http://www.valor.com.br/termos-de-uso. Este material não pode ser publicado, reescrito, redistribuído ou transmitido por broadcast sem autorização do Valor Econômico. Leia mais em: http://www.valor.com.br/politica/2538558/sean-penn-contra-meryl-streep#ixzz2hLNdNSt5

quinta-feira, 7 de março de 2013

Morte aos selvagens unitários

Esta coluna foi publicada em 29 de dezembro de 2011 . Por César Felício A reescrita da história é uma tarefa permanente do poder, como a história do Brasil ensina de cátedra. Houve um tempo em que o marco fundador do país era comemorado em 12 de outubro, o aniversário do imperador dom Pedro I. O século XIX terminou com a reverência à memória de Tiradentes, executado pela avó do primeiro monarca. Mais recentemente um inimigo dos republicanos positivistas, Antonio Conselheiro, ganhou ares libertários e uma onda ufanista e tardia de desenvolvimentismo faz com que hoje a memória de Juscelino Kubitschek seja disputada por governistas e oposicionistas, enquanto a lembrança de Getúlio Vargas se esmaece. Se assim é no Brasil, um país em que a cada 15 anos esquece-se tudo o que se passou nos últimos 15 anos, como brincou uma vez o jornalista Ivan Lessa, a reescrita chega ao paroxismo na Argentina. A presidente Cristina Kirchner vai na linha oposta à de Luiz Inácio Lula da Silva e seu famoso bordão "nunca antes na história deste país". No universo cristinista, o debate de hoje é a mesma história de sempre. Guarda semelhança com certos romances do realismo fantástico, em que o passado, na verdade, jamais passa, e as situações se repetem em um moto perpétuo. Pode-se assim reivindicar o legado de caudilhos contemporâneos da formação do país e atribuir aos adversários uma folha corrida herdada das caravelas. A primeira e mais óbvia alegoria kirchnerista envolve o casal Juan e Eva Perón, protagonistas aliás de um filme exibido este ano na Argentina e muito elogiado pela presidente. É uma epifania invertida, em que desta vez é a mulher que sobrevive ao homem e organiza o culto em sua memória. Na história de Juan e Eva, coube ao general viúvo patrocinar a idolatria à falecida primeira dama. Intolerância cresce na Argentina A segunda investida, de mais difícil compreensão, mas de alcance muito maior, é o resgate da memória de Juan Manuel de Rosas. O caudilho foi deposto do governo de Buenos Aires em 1852, em um tempo em que a Argentina ainda não tinha um poder central. Rosas foi obrigado a um exílio até a morte na Inglaterra por outro caudilho, Urquiza, apoiado por uma força expedicionária brasileira. Sete anos antes, enfrentou tropas francesas e inglesas na foz do rio da Prata, para manter a navegação fluvial fechada a estrangeiros. O dia da batalha tornou-se feriado este ano no país, por obra da presidente. A cerimônia, que aconteceu no dia 20 de novembro, tão cedo não será esquecida. Cristina criou o "Instituto Histórico Revisionista Manuel Dorrego", cujo nome é auto-explicativo e colocou no peito a insígnia federalista, o partido de Rosas. Reviver Rosas é, de certo modo, evocar um estilo de se fazer política. Enquanto governou Buenos Aires, fechou o rio da Prata para o comércio internacional, o que significava trancar o país inteiro. Estrangulou a classe mercantil, mas estimulou uma indústria rudimentar para substituir as importações. Mas se notabilizou por ter usado com habilidade a propaganda política como arma no início do século XIX. A primeira engrenagem desta ferramenta foi a demonização da oposição. "Morte aos asquerosos, imundos e selvagens unitários" era um lema que estava nos jornais, nos teatros, nas escolas e até no púlpito das igrejas. O discurso satanizador ligava os opositores a violências como enterrar vivos a adversários, e à entrega das riquezas nacionais a estrangeiros. O segundo passo foi criar uma identidade visual para cada grupo. Os federais se vestiam de forma tradicional, usavam bigode e adereços em vermelho. Os imundos unitários eram aqueles que se vestiam de forma mais moderna e apresentavam-se de rosto liso. O passo seguinte foi estimular a concretização do lema do regime, ou seja, a promoção da morte "da raça de víboras" por um braço armado do rosismo, a "mazorca". Com o fim de Rosas, o poder "unitário" iria abrir caminho para uma oligarquia rural e mercantil ditar os rumos do país por oitenta anos e retribuir o carinho na mesma moeda a seus inimigos. Autor de "Civilização e Barbárie", um libelo contra Rosas, o presidente Domingos Sarmiento aconselhou em um escrito a não se economizar o sangue dos "gauchos", ou homens do campo, porque pelo menos para regar a terra ele haveria de servir. As metáforas zoomórficas permaneciam quando Perón chegou ao poder e a multidão que o apoiava foi classificada como "aluvião zoológico" por um deputado da oposição. O casal Kirchner parecia distante deste modelo ao chegar ao poder em 2003 em uma aliança entre diversos setores sociais e políticos. À medida que se fortaleceu, foi abandonando a composição política, até fechar-se em uma equação familiar. Cristina tomou posse em seu segundo mandato recebendo a faixa presidencial da filha e jurando em nome do marido. Governa utilizando 100% da capacidade instalada de exercer a autoridade e o filho Maximo Kirchner, é um dos homens mais influentes do país. O câncer na tireoide atinge Cristina no momento em que a questão que se colocava para 2012 para a Argentina é se ela iria ou não evocar a tradição de Rosas para além do simbólico. Quem lê os jornais argentinos pode acreditar que o país pode ganhar os contornos da Rússia de Vladimir Putin ou da Venezuela de Hugo Chávez a médio prazo. Até agora, convém duvidar, e a própria transparência com que a doença foi tratada em um primeiro momento a afasta da comparação com o venezuelano. Não há quem aponte um gesto concreto da presidente fora da institucionalidade. Cristina não é suspeita de mandar envenenar inimigos com cápsulas radioativas, não colocou adversários no exílio e nem convocou plebiscitos para se perpetuar no poder. Com seu provincianismo exarcebado e seu estilo imperial de governar, apenas cultiva por ora a intolerância como traço seminal da política argentina